Doutor na terra do Padim Ciço: as memórias do "adeus" de Sócrates ao Corinthians em Juazeiro
Partida em junho de 1984 marcou a despedida de Sócrates do Timão em solo brasileiro; GloboEsporte.com conversou com quem estava em Juazeiro no dia histórico |
Pela primeira vez, Juazeiro do Norte, a 550 quilômetros de Fortaleza,
recebia um Boeing da Varig. Era junho de 1984. O aperreio dos torcedores
após o pouso do avião não era simplesmente por essa imagem inédita. Mas
porque, naquele voo, estava Sócrates, que na terra de Padre Cícero se
despediria do Corinthians, em solo brasileiro.
A multidão, no Aeroporto Regional do Cariri, enlouqueceu quando o Timão
chegou para jogar contra o Vasco, em um amistoso marcado para acontecer no
Estádio Romeirão. Era o evento que lembrava os 50 anos da morte de Padim
Ciço. Para alguns, o jogo era um milagre.
Sócrates ganhou xilografias de Padre Cícero, Lampião, uma paisagem
nordestina e um pôster do Corinthians, feito a bico de pena, onde o
ex-atleta aparecia em primeiro plano. Além disso, ganhou um cordel do poeta
do sertão, Pedro Bandeira, chamado "A despedida de Sócrates". O prefeito de
Juazeiro do Norte à época, Salviano Sobrinho, comentou em entrevista ao
Jornal Diário do Nordeste.
- É mais um milagre de Padre Cícero, essa vinda de Corinthians e Vasco ao Juazeiro. Para nós, a festa do cinquentenário da morte de Padre Cícero começou hoje - declarou na edição de 3 de junho, data do jogo.
Sócrates em chegada a Juazeiro do Norte — Foto: Capibaribe Neto/Arquivo Diário do Nordeste |
Carreata e festa com buchada
Após o desembarque, Corinthians e Vasco foram acompanhados por uma carreata
até o Hotel Panorama, famoso em Juazeiro naquele período. Mas Sócrates não
ficou no local. Foi, ao lado do zagueiro Juninho e de amigos, para a famosa
"Peixaria do Praxedes".
O combinado, segundo o comentarista Wilton Bezerra, atualmente do Sistema
Verdes Mares e que estava com Sócrates no local, é que ninguém ficasse
sabendo do paradeiro de Sócrates. O que não ocorreu. O restaurante lotou. E
logo o jogador e os companheiros pegaram as comidas e foram para um sítio de
um empresário, tudo regado à bebida e tira-gostos locais, como
buchada.
- Naturalmente, ele (Sócrates) era gente fina, "cabra" da melhor qualidade.
Falamos na Peixaria do Praxedes e ele aceitou. Ele e Casagrande eram as
atrações. Na noite anterior ao jogo, nós comemoramos, em companhia dele. O
fato é que foi uma festa no restaurante, no hotel Panorama, também - conta
Wilton, que trabalhou no jogo por uma rádio da época.
E lembra sobre um caso engraçado envolvendo o ex-técnico Praxedes Ferreira,
figura conhecida em Juazeiro do Norte pela fama de disciplinador.
- O Praxedes, para fazer pose, olhou para o Sócrates e disse: "Olha, você bebendo dessa forma, no meu time você não jogava...". No que o Sócrates respondeu: "Praxedes, eu estou morto de preocupado com isso" - ri Wilton.
Despedida e Democracia
No jogo no Romeirão, o Corinthians fez três gols no segundo tempo. Relatos
de jornais da época dizem que o primeiro tempo foi de bocejar. Roberto
Dinamite esteve presente pelo Vasco, mas não jogou. Só distribuiu
autógrafos. Não estava previsto que Sócrates fosse voltar para a segunda
etapa, o que ocorreu. Não marcou, mas levantou a torcida com toques de
calcanhar e com o passe para Biro Biro marcar o primeiro.
Galo marcou o segundo, com a ajuda do "calcanhar de ouro", e Dicão fechou o
placar. Sócrates deixou o gramado do estádio faltando três minutos para o
final. Não falou à beira do gramado, tamanha emoção. Ele recebeu uma camisa
da "Democracia Corinthiana" autografada pelos companheiros do Timão.
Diário do Nordeste de 1984, após despedida de Sócrates — Foto: Arquivo Diário do Nordeste |
Zim Facundo, ex-jogador do Icasa por cinco anos, relembra o dia. Hoje, aos
62 anos, recorda imagens do jogo histórico. Estava na arquibancada do
estádio.
- Nessa época do jogo do Corinthians, eu era juvenil. Lembro do Geovani, do
Vasco, grande atração, Casagrande, pelo Corinthians, e o Dr. Sócrates. Ele
era um cara bem simples, atendia todo mundo. Foi beber em uma churrascaria
de Juazeiro. Ele, com a simplicidade dele, recebia a todos. Tinha o Praxedes
Ferreira, ele era pescador, tinha uma churrascaria. O Sócrates foi lá, comeu
peixe, tomou a cachacinha dele. E se tornou uma pessoa conquistadora.
Torcedor do Corinthians tem no mundo todo. Juazeiro na época era uma cidade
menor - lembra Zim.
Cícero Aloísio Farias Gregório, de 54 anos, hoje representante comercial,
foi um dos oito gandulas daquele jogo. Apesar de ser flamenguista doente,
lembra a emoção de ter sido escolhido.
- Eu estava como gandula. Eu já era da equipe do Romeirão. Eu torcia para
ser escalado para esse jogo, foi uma alegria grande. Eram 40 gandulas, foram
escalados oito. Estive perto de Sócrates, Casagrande, pelo Corinthians. Foi
inesquecível. Eu tinha 18 anos. Foi uma festa incrível, carreata no
aeroporto. Dois times da capacidade de Vasco e Corinthians. Histórico para
Juazeiro. De repente, foi anunciado esse jogo. Foi uma surpresa. Esses
eventos são de muita gente. Era muito jornalista, filhos de pessoas
influentes. Fiquei jogando bola para Casagrande antes do jogo. Foi incrível.
Apesar de ser flamenguista doente, amei esse jogo - declara.
A emoção
Após o jogo, Sócrates protagonizou uma imagem forte. Baixou a cabeça e
tapou o rosto com as mãos, falando sobre o último jogo pelo Timão em solo
brasileiro. O destino era a Itália.
- Sinto tristeza, solidão. É como perder uma parte da gente, é como se
tivessem amputado uma parte de mim, um membro do meu corpo. É só desse jeito
que consigo explicar o que sinto - afirmou à Revista Placar da época.
Em entrevista na edição do dia 4 de junho de 1984 do Jornal Diário do
Nordeste, um dia após o jogo, Sócrates comentou sobre a "Democracia" no
Corinthians.
- Não morrerá, tenho certeza disso, pois o pessoal vai continuar com o mesmo ânimo e espírito de luta - afirmou.
Em entrevista ao Globo Esporte, em 2016, Casagrande comentou que, atendendo
ao pedido de uma garota com quem ele saiu, "doou" a camisa usada por
Sócrates no jogo histórico. Sócrates não teria gostado no início.
- Deu um pouquinho, ele (Sócrates) chegou na porta do quarto, parou,
pensou, me abraçou e disse: "mas foi por uma boa causa" - brincou
Casagrande.
Sócrates deixou o Corinthians rumo à Itália, onde também estiveram Zico e
Falcão, por exemplo. Antes, porém, eternizou-se na memória dos 180 mil
moradores de Juazeiro à época e nos versos de Pedro Bandeira.
"O jogo é bonito e sériodos times no Romeirãoparece até um mistériodo Padre Cícero RomãoEu vibro e não me enganoo Corinthians de São Pauloe o Vasco do Rio de Janeirofazem mais uma partidae Sócrates a despedidado futebol brasileiro."
Por Thaís Jorge — Fortaleza, CE