Museus Orgânicos do Cariri inspiram coleção de Ronaldo Fraga: "verdadeiros mitos são esses mestres"
Legenda: Ronaldo Fraga mergulha na história dos Mestres da Cultura do Cariri: "É uma cultura fertilíssima" - Foto: Foto: Vandson Domingos |
Em visita ao Cariri cearense, estilista mineiro conhece mais sobre os mestres da cultura e criará coleção em parceria com Sesc e Senac.
"O Brasil é o Nordeste", declara o criativo Ronaldo Fraga enquanto percorre as ruas repletas de histórias da cidades do Cariri. O estilista mineiro está na região para produzir sua próxima coleção, a ser apresentada dia 23 de junho, na edição N° 51 do São Paulo Fashion Week, de forma virtual. Os Museus Orgânicos, casas de Mestres da Cultura transformadas em espaços de contemplação do saber de cada um, são o ponto de partida da produção das peças de roupas.
A moda de Ronaldo não é, nem nunca foi, somente sobre roupa. Em cada desfile que se propõe a fazer, a exibição das peças nas modelos (no ainda tradicional formato presencial) sempre trouxe a tona discussões, sejam culturais ou artísticas, assim como de tragédias e outros temas sociais de urgente debate. Na última edição da semana de moda, por exemplo, já em período de pandemia e apresentado de forma digital, Zuzu Angel foi o ponto de partida de criação de Ronaldo para, junto com a biografia da estilista que denunciou e protestou contra a ditadura militar em suas coleções, falar sobre o Brasil atual.
Legenda: Ronaldo em encontro com o mestre Espedito Seleiro - Foto: Foto: Augusto Pessoa |
E como o Cariri e sua explosão multicultural pode refletir sobre o contexto o qual vivemos? "A única saída para esse país é a cultura", relembra o mineiro enquanto reforça que os mestres são os guardiões desses saberes. Foi entre uma prova de roupa e outra, enquanto experimentava no corpo que forma a roupa ganharia ao vestir, que Ronaldo contou os impactos causados pela visita ao Cariri cearense. "Eu costumo dizer que o grande amálgama da cultura brasileira está no Nordeste brasileiro, e o epicentro dessa amálgama do Nordeste é o Cariri", reforça.
E é da visita à casa dos mestres, do papo com Espedito Seleiro, da contemplação dos soldadinhos-do-araripe, da ida à Fundação Casa Grande ("No meu Brasil ideal, Alemberg Quindins seria o nosso ministro da Cultura", refletiu em post no Instagram), da apresentação a um grupo de artistas contemporâneos, e entre tantos outros expoentes culturais da região que vem se costurando a "Terra de Gigantes", nome da coleção.
O Cariri é uma região que já foi retratada em outras coleções, de outras marcas, já pisou na SPFW de diversas maneiras, você mesmo já retratou o sertão em suas coleções... O que mostrar sobre a cultura do Cariri como algo ainda inédito? O que pode adiantar desta Terra dos Gigantes?
Primeiro eu já fiz a coleção a “Carne seca” (“Carne Seca ou um Turista Aprendiz em Terra Áspera”, lançada em 2013 na SPFW), em que coloquei, numa mesa, o alagoano Graciliano Ramos, batendo papo com o pernambucano João Cabral de Melo Neto e com o cearense Espedito Seleiro. Esse foi meu primeiro contato com o mestre Espedito. Dessa vez é diferente, primeiro porque eu não falo de somente um gigante, eu falo de gigantes. E da potencialidade gigante e criativa e oxigenante dessa região do Brasil. Eu costumo dizer que a grande amálgama da cultura brasileira está no Nordeste brasileiro, e o epicentro dessa amálgama é no Cariri. Isso muito em função da nossa formação. É aqui que o Nordeste, e consequentemente o Brasil, é mais mestiço, tem a força indígena, misturada com africanos e europeus. E outra diferença é que das outras vezes a coleção nascia a partir da obra de um mestre, ou então chamando a atenção para esse estereótipo de um Cariri seco, de um Cariri árido, e eu vou mostrar que de árido esse lugar não tem nada. É uma cultura fertilíssima. O Brasil confunde os “Cariris”, o semiárido da Paraíba com o cearense, que é outra história. Então, essa coleção trata a história dos mestres.
Os Museus Orgânicos transformam a casa dos Mestres em um espaço para visitação e conhecimento. Então, eu fico pensando nesse paralelo do corpo como casa, que também entra na ideia da moda... isso faz parte dessa criação para coleção?
Esse projeto dos Museus Orgânicos é uma coisa fascinante e um grande exemplo pro Brasil, quiçá pro mundo, porque ele não fala da obra, da obra de arte de um ou de outro, ele fala do universo do artista. E é nesse lugar aqui, quando eu vejo, por exemplo, um mestre cuja obra é intangível e um artista contemporâneo da nova geração, que faz uma arte contemporânea da melhor qualidade, mas trazendo aquilo da marca dos artistas desse lugar, que é a relação com as cores, com a natureza e, principalmente, uma relação de afeto, de festa. Então, quando você vê a estética dos brincantes, do grande mestre Antônio Luiz, o que é aquilo? Com aquelas cores, com aquela vibração do azul com o vermelho. Então, ali a alegria, a dança, a música tem uma estética, você consegue vestir. Eu quero vestir essa alegria, você consegue vestir essa peça. Então, isso com a narrativa de moda é maravilhoso. Ela se completa, e eu ainda não vi isso.
E essa união de narrativas falará sobre o que, de que forma?
Outro dia alguém falou: “nossa, com esse momento que o Brasil tá passando, imagino que você vá fazer uma coleção bem política”. E eu digo: “sim". Porque eu nunca deixei de fazer uma coleção política. Só que política que eu falo agora não é de protesto, é de manifesto. E o manifesto à alegria é algo muito caro nesse país que a gente tá vivendo. E a única saída e alento para a reinvenção do país, não tem outro lugar se não pela porta da cultura. Eu li a pouco tempo, no livro do Durval (Durval Muniz de Albuquerque Jr, professor da UFPE e UFRN, autor do livro “A Invenção do Nordeste” e colunista do Diário do Nordeste), ele tem um estudo muito bacana que ele diz que o Nordeste só passou a existir de 1910 pra cá. Porque não existia políticas de estado para a região, pra estruturar os artistas da região. Então, o que esse governo faz é que o povo que resiste ele tá destruindo. Eu acho que , nesse momento é importantíssimo que o artista, o designer, se manifeste, se unam a outros artistas. E eu tenho maior respeito pelo artista popular. O artista da arte popular é a base de tudo.
Porque eu nunca deixei de fazer uma coleção política. Só que política que eu falo agora não é de protesto, é de manifesto. E o manifesto à alegria é algo muito caro nesse país que a gente tá vivendo.
A criação de fato coletiva e colaborativa é parte do seu DNA, do seu trabalho, mesmo estando nesse universo da moda que é tão envenenado pela apropriação, seja cultural, seja de saberes, seja de matéria-prima. Como você faz pra ir nessa contramão e realmente somar junto?
Eu sou aquele que, se fosse um jogo, eu sou o que dá o chute na bola, quando muito o técnico. A moda não é um trabalho solitário, o trabalho de criação na moda é coletivo. Tanto no trabalho de feitura das peças, como na divulgação. Olha o tanto que um desfile mobiliza. Eu nunca tive problema de dividir conhecimentos, muito pelo contrário, muito menos problema de lançar luz sobre os colaboradores. Sempre coloco o nome das bordadeiras, o nome de tudo, onde eu fiz. Então, nesse projeto tem uma coisa que é complicada, que estamos no meio de uma pandemia, e onde você tinha que fazer a distância essa monitoria. O trabalho com os meninos do Senac, eles tiveram a oportunidade de por dois meses toda terça-feira acompanhar o processo de criação, então eu ia mostrando pra eles, trocando ideias, mostrando o caderno. Aprendi isso com meu mentor intelectual, Mário de Andrade, é muito importante ter esse olhar de um turista aprendiz sobre a nossa própria cultura. É você olhar com olhar de turista.
Legenda: Mestra Dinha recebeu o estilista em seu Museu Casa-Oficina - Foto: Foto: Augusto Pessoa |
Nesse olhar de turista, mesmo você já conhecendo o Cariri, teve algo que ainda não conhecia e que se surpreendeu?
Tinha muitos mestres que eu não conhecia. O Brasil acha que o Cariri é só o Espedito Seleiro, que com todo o mérito de mestre como ele merece ser chamado, mas tem algo do intangível, outros saberes e muitos outros mestres que eu não conhecia. O que é legal de um trabalho como esse para esses novos estilistas que é o resgate ou reinventar, porque a pesquisa te transforma. É a chance que você tem de se tornar uma pessoa mais interessante, uma pessoa com mais assunto na mesa, sabe? A moda tem um déficit que ela nasce de um estigma de futilidade, como se fosse algo fútil que não tivesse conhecimento. Então é importante estabelecer diálogo com outras frentes, com a arte popular, com a arte contemporânea.
Esse Nordeste, que já foi tão estigmatizado, tem algo que o Brasil perdeu. O Brasil é o Nordeste. Onde o Brasil é Brasil, é no Nordeste.
RONALDO FRAGA
Estilista
Como vem sendo essa experiência das semanas de moda digitais?
Eu digo que ‘há malas que vão para Belém’. Essa janela não vai se fechar nunca mais. Lembro que eu queria ter feito um desfile assim há muitos anos, que ele traz as pessoas pra esse lugar, você diminui as distâncias. Então, passando essa pandemia, eu acredito sim que a gente vai continuar. Isso, na verdade, já vinha acontecendo, as pessoas já estavam acompanhando o desfile pela internet, mas o desfile num formato tradicional, de vai e vem de modelos. Hoje você pode fazer mais e descobrir novas formas divulgação desse negócio. O lance é: o mundo acabou, como a gente conhecia, ele acabou! Estamos sob escombros, então nesses escombros não existem formulas, nem lá fora, nem aqui. É tempo de ser inventivo. É uma questão de sobrevivência.
A moda tem um déficit que ela nasce de um estigma de futilidade, como se fosse algo fútil que não tivesse conhecimento. Então é importante estabelecer diálogo com outras frentes, com a arte popular, com a arte contemporânea
Em um post no Instagram você cita que a sua energia vital e criativa brota do Brasil. Pensando nesse momento em que tanta gente pensa em sair, em fugir, como achar essa cura dentro do país?
Quando o pessoal fala em fugir, vai fugir pra onde? Não tem como fugir não, gente. ‘Ai eu vou pra Portugal’, vai lá e fica num prédio lotado de bolsonarista. ‘Ai eu vou pra Miami’ e tá a mesma bo***. Não tem mais lugar. Reinvente a partir daí. Onde existe verdade nesse país, é no Brasil profundo, é na cultura genuína desse País. O Gil (Gilberto Gil) falou uma coisa bonita, ele disse que o Brasil é maior do que esse abismo. O Brasil é mais. Quando eu vejo o afeto das pessoas aqui (no Cariri), a relação das pessoas é em outro tempo, outra história. Então, esse Nordeste, que já foi tão estigmatizado, tem algo que o Brasil perdeu. O Brasil é o Nordeste. Onde o Brasil é Brasil, é no Nordeste. Me desculpe o restante do País, que eu amo. Mas é a mistura que me interessa. De um país que sempre negou suas misturas, que maquiou de branco sua marronzisse, é a nossa saída agora. Então, esse lixo desse governo genocida, ele vai passar. Se essa guerra que vivemos hoje fosse a Segunda Guerra, estaríamos em 1941, então ainda temos um tempo pela frente, mas ele vai passar. E tem algo que é mais forte vai existir, que vai sobreviver. Não tem como. Temos que acreditar e seguir adiante.
Legenda: O estilista recebe a reza da Mestra Zulene Galdino - Foto: Foto: Augusto Pessoa |
Pensando nesse contexto atual, percebemos que não precisamos de um monte de coisa, inclusive de roupas. Então, do que a gente precisa agora?
A gente vai precisar trazer outros valores. No caso da moda, os chineses sabem fazer roupa melhor do que a gente. São mais rápidos, tem preço, eles produzem de todo tipo... A indústria têxtil migrou para os países asiáticos e ponto. Então, o que que nos resta? É a criação. Então, mais do que nunca precisamos investir na criatividade. Todo o setor vai ser mexido, as escolas de moda estão caducas, ensinando como era lá atrás pra uma indústria que não existe mais. Você tem que achar um meio de fazer aquilo que o outro não faz. É preciso amplificar esse conhecimento com a galera, estabelecer esse diálogo com outras frentes. Você tem que fazer aquilo que o outro não faz, é criar um produto mais humanizado, humanizar projetos.
O lance é: o mundo acabou! Como a gente conhecia, ele acabou. Estamos sob escombros. Então, nesses escombros não existem formulas, nem lá fora, nem aqui. É tempo de ser inventivo. É uma questão de sobrevivência.
Passando por tantas experiências em um lugar tão rico e em um momento tão sensível, já houve algum que você vai guardar, que te marcou mais?
Essa coisa da força dos índios Cariri aqui, ela tá viva. É onde você vê a força de uma cultura. No dia que eu fui na Mestra Zulene Galdino, ela veio e disse que ia me fazer uma reza. Eu fui no mato com ela catar as folhas e ela rezou em mim. Quando vi que ela tava fazendo uma oração, com os olhos fechados, ela estava fazendo um reiki! Então, fiquei vendo que o reiki vem de um tradição. Todo esse conhecimento, ele já veio dos índios que faziam isso, a bisavó dela foi indígena. Essa história da presença, da força dos Cariris tá no povo. Essa influência está no ar, está na música que as pessoas escutam, é uma coisa que perpassa. Estamos em um momento um empobrecimento geral. por isso é importante lançar luz sobre os verdadeiros mitos, pra gente não confundir com mitos errados. Porque os verdadeiros mitos são esses mestres, eles são os verdadeiros guardiões da cultura de um lugar. O título de mestre que precisa ser conferido para aquele que merece.
Escrito por Gabi Dourado/Diário do Nordeste